
A obra “Nossa Senhora das Flores” de José Roberto Aguilar mistura fé, psicodelia e identidade brasileira
Nossa Senhora das Flores: Sagrado Feminino e Surrealismo Tropical na Arte Brasileira
“Nossa Senhora das Flores” de José Roberto Aguilar apresenta uma reinterpretação radical da iconografia mariana através de uma estética surrealista vibrante e profundamente brasileira. A obra subverte as representações tradicionais do sagrado feminino, criando uma figura que é simultaneamente divina e terrena, mística e pop, ancestral e contemporânea.
Iconografia Revolucionária e Simbolismo Visual
A figura feminina domina a composição com sua presença hierática e frontal. O cabelo, transformado em ondas vermelhas que fluem como rios ou chamas, substitui o tradicional manto azul mariano. Este elemento serpentino evoca tanto a força vital quanto a conexão com forças ctônicas e naturais, reimaginando a santidade através de uma lente pagã-cristã sincrética.
O olho único e penetrante, com sua íris dourada, transforma a figura em vidente e guardiã, ecoando tanto o “olho que tudo vê” místico quanto referências a divindades pré-colombianas. A visão monocular sugere uma percepção unificada, transcendente, capaz de ver além das dualidades do mundo material.
Elementos Decorativos e Cultura Popular
O vestido azul profundo, ornamentado com padrões circulares e florais em dourado e vermelho, funde elementos do barroco colonial brasileiro com a estética pop contemporânea. Os círculos podem representar flores estilizadas, mandalas ou olhos múltiplos, criando um manto que é simultaneamente protetor e revelador.
O cetro triangular com bandeira branca introduz elementos de poder e pureza, mas também evoca estandartes de procissões populares e festas religiosas brasileiras. Esta fusão do erudito com o popular é característica da antropofagia cultural brasileira.
Cromática Simbólica e Atmosfera Onírica
A paleta dominada por azuis – do cerúleo ao marinho – cria uma atmosfera simultaneamente celestial e oceânica. O rosa da pele e os vermelhos vibrantes do cabelo e ornamentos introduzem calor humano e paixão terrena neste campo cromático frio. Os dourados pontuais sugerem iluminação divina e preciosidade.
O fundo dividido horizontalmente entre azul claro e escuro pode representar a divisão entre céu e terra, consciente e inconsciente, ou as águas superiores e inferiores da cosmologia cristã, reinterpretadas através de uma sensibilidade surrealista.
Sincretismo Religioso e Cultural
“Nossa Senhora das Flores” exemplifica o sincretismo religioso brasileiro, onde elementos cristãos, indígenas e africanos se fundem. A figura pode ser lida simultaneamente como Nossa Senhora, Iemanjá, ou uma deusa floral pagã. Esta multiplicidade de leituras reflete a complexidade espiritual brasileira.
O título evoca tanto a devoção mariana quanto referências literárias (Jean Genet) e culturais que subvertem o sagrado tradicional. As “flores” ausentes visualmente tornam-se metáfora para uma floração interior, espiritual e psíquica.
Técnica Pictórica e Estilo Visual
A obra demonstra influência da arte naïf e do muralismo latino-americano, com suas formas simplificadas e cores chapadas. No entanto, o refinamento na construção simbólica e a sofisticação das referências revelam um artista consciente navegando entre diferentes registros culturais.
O estilo gráfico, com contornos definidos e áreas de cor pura, cria uma imagem icônica de forte impacto visual, funcionando como um novo ícone sagrado para a era contemporânea.
Dimensão Feminista e Poder Matriarcal
A representação frontal e imponente da figura feminina, portando símbolos de poder e sabedoria, oferece uma visão empoderada do feminino sagrado. Esta Nossa Senhora não é submissa ou sofredora, mas uma força ativa, vidente e governante de seu próprio domínio místico.
O cabelo fluindo livre, em vez de coberto, sugere libertação das convenções, enquanto o olhar direto desafia o observador a encontrar o divino no humano e o humano no divino.
Impacto Cultural e Relevância Contemporânea
“Nossa Senhora das Flores” funciona como declaração sobre a natureza fluida e sincrética da espiritualidade brasileira contemporânea. A obra propõe novos caminhos para o sagrado, onde tradição e inovação, devoção e irreverência, popular e erudito coexistem sem conflito.
Em tempos de crescente pluralismo religioso e busca por espiritualidades alternativas, esta Nossa Senhora surrealista oferece um modelo de santidade que abraça a complexidade, a contradição e a beleza do caos criativo.

A obra “Nossa Senhora das Flores” de José Roberto Aguilar mistura fé, psicodelia e identidade brasileira